Críticas – Curta-metragem | 5ª edição

Sobre os críticos

Fabiana Lima (@cinemafilia) é crítica de cinema e criadora de Conteúdo desde 2019 primeiramente no Instagram, onde por meio da sua página publica críticas sobre filmes e séries além de postagens especiais que incluem artigos diversos os quais que relacionam, dentre muitas temáticas, o Cinema com a Música, Moda, Maquiagem e, principalmente, com temáticas sociais e, ano passado, se tornou colunista de um dos maiores veículos de entretenimento, o site Cinem(ação) que possui cerca de 50 mil acessos mensais. Foi crítica oficial da Mostra Novo Cinema Maranhense, em 2019, do Festival de Cannes, na França, em 2022 e 2023 e do Festival Guarnicê também em 2022 e 2023. Além do Festival Internacional de Cinema do Rio, ano passado.

Caio D Carvalho é mestre em Semiótica e Comunicação pela PUC-SP. Bacharel em Ciências Sociais pela UFMA. Atua na produção e edição telejornalísticas, mas ainda é um homo academicus (no melhor sentido possível do termo…) incorrigível, estando atualmente focado em pesquisas sobre crítica de arte e o modelo barthesiano de crítica. É, além disso, musicófilo, eterno baterista e apaixonado por narrativas ficcionais (ou “mundos possíveis”, principalmente os do cinema).


Batalhas da Ilha

Dirigido por Lucas Silva

Por Fabiana Lima:

Como o Cinema, a Música também detém do poder de ser instrumento político-social, que promove mudanças, aproxima pessoas e constrói identidade. Uma das razões que me levaram a me tornar uma apaixonada pelas artes, em especial pelo cinema, foi o poder revolucionário que todas estas possuem, ainda mais quando usam da sua voz ativa para transmitir uma mensagem relevante. Eu acredito em um cinema político, assim como acredito em uma música política, uma arte que leva algo à sociedade à medida que reflete sobre esta.

Em Batalhas da Ilha, ambas música e cinema se unem em uníssono, como se o preto e o branco fossem, para fazer um forte comentário social, com recorte racial, principalmente, tendo como pano de fundo bairros periféricos de São Luís, o que acaba por refletir uma realidade muito mais abrangente da sociedade ludovicense no geral. Com cerca de 71% da população preta (segundo dados do censo de 2022), atrás apenas de Salvador, a capital do Maranhão ainda fala muito pouco sobre as origens da sua própria comunidade. É raro vermos esse assunto refletir culturalmente e, especialmente, ocupando os espaços públicos. 

Além do Reggae e das manifestações culturais juninas como Bumba-Meu-Boi e Tambor de Crioula, que sempre foram parte indissociável da tradição maranhense, o Hip Hop não tinha muito espaço dentro da nossa cultura e vivência urbana – até agora. O que Lucas Silva aborda neste curta-documentário é de grande importância sobretudo porque a crescente desse cenário artístico na cidade e no estado, tão urbano e novo, em pouquíssimo tempo, já rende uma porção considerável de frutos para os ludovicenses artisticamente e já agrega nossa cultura de formas inimagináveis, exportando talentos para fora do Maranhão.

A escolha de iniciar o curta com o depoimento da primeira mulher preta trans, discutindo a vivência nas ruas como uma resistência já nos passa um sentido muito maior sobre a palavra “batalha” que aquele que simplesmente habita seu título. Todo o discurso irá girar em torno da importância da arte enquanto instrumento político que citei no início do texto, inclusive ressaltando seu viés transformador na vida de crianças e adolescentes os quais seguem o caminho da música em detrimento ao caminho da marginalidade. 

A fotografia é acertada não só pela escolha pelo preto e branco, que irá permitir que focamos bem mais nas falas dos entrevistados, sem maiores distrações visuais, como também pela excelente execução que faz com que os corpos pareçam reluzir em tela, colocando em evidência quem são as verdadeiras estrelas dessa narrativa sobre resistência e senso de comunidade, busca de identidade. Um dos momentos que mais merece destaque é quando MC Ezek fala sobre a falta de valorização do cenário de batalhas do estado, explicitando que este floresce mesmo sem apoio estatal e em meio a enormes dificuldades – o que abre espaço para que pensemos quantos jovens estariam seguindo esse caminho caso houvesse essa visibilidade.

Batalhas da Ilha é o retrato de um momento social pelo qual São Luís passa, quase como um testemunho do nascimento e florescimento, por conseguinte, de uma nova manifestação, de um novo tempo. É, também, uma chamada para o quão importante é trazer voz para essas comunidades e seus projetos, que tanto inspiram a juventude a fazer arte e contribuir com a cultura. Um curta que poderia facilmente se tornar um longa, deixando um gosto agridoce de quero mais. 


Por Caio D Carvalho:

A batalha maior, mais necessária e mais difícil DE VERDADE, enfrentada por jovens rappers de comunidade, é entre cultura e subjetividade. Esta é uma das lições mais gerais deste documentário, que, juntamente com “O Promesseiro”, nos presenteia com uma antropologia audiovisual de mão (e verbo) cheios. 

Casa de Bonecas

Dirigido por George Pedrosa

Por Fabiana Lima:

O horror enquanto gênero cinematográfico e o cinema queer estão intrinsecamente ligados desde o início do Cinema como arte. Desde quando Murnau adaptou Drácula de Bram Stoker em 1922 com sua obra Nosferatu, o cinema queer e o cinema de horror estiveram conectados, em uma história que perpassa obras de Wes Craven, Cronenberg, Ducournau e muitos outros diretores, e filmes que se tornaram verdadeiros símbolos da comunidade ao longo do tempo e marcos na história do cinema como A Hora do Pesadelo 2 (1985), Videodrome (1983), Titane (2021), Garota Infernal (2009), Entrevista com o Vampiro (1994), Babadook (2014), The Horror Picture Show (1975) e tantos outros filmes B que também entram nesse hall. 

Seja através de um subtexto, uma alegoria ou uma hipérbole, o horror é um dos gêneros que com maior facilidade conseguiu acolher temáticas queer através dos anos e trabalhar temas que para essa comunidade são tão caros. Essa é a razão pela qual uma nova geração de cineastas no Brasil e no mundo têm abraçado cada vez mais o gênero e suas vertentes a fim de abordar assuntos socialmente relevantes que concernem a grupos minoritários os quais, por muito tempo, foram negados à representatividade no Cinema. 

Esta é definitivamente uma tendência do cinema contemporâneo a qual, no Brasil, se traduz em uma grande quantidade de filmes – desde o recente As Boas Maneiras (2017) até o próprio Casa de Bonecas. O cinema brasileiro já cultiva uma longa história com o horror para a abordar a sexualidade se pararmos para analisar os filmes da pornochanchada, mas hoje essas obras recebem a influência de um experimentalismo moderno o qual, embora incorpore elementos dessa transgressão histórica, o faz por meios diferentes do que fora outrora, o que faz parte de uma tendência natural das mudanças sociais e técnicas pelas quais o Cinema passou desde então.

Acredito que Casa de Bonecas encapsula muito bem essas mudanças e esse momento através da complexidade e do experimentalismo na forma, traduzindo em sua direção de arte, fotografia e trilha sonora imersivas uma múltipla quantidade de referências que casam muito bem na hora de traduzir os sentimentos de pertencimento e deslocamento de pessoas LGBT’s em sociedade. O curta é, sobretudo, bem sucedido em criar um universo dentro dos limites daquele cenário o qual transmite para nós uma espécie de acolhimento para os personagens, os quais escolhem uns aos outros para conviverem e construírem um núcleo familiar e, a partir disso, serem livres para ser quem quiserem ser. Algo que acontece todos os dias com pessoas queer no Brasil e no mundo.

Dentro do contexto de um país extremamente afetado pela homofobia, transfobia e ao menos uma dezena de outras manifestações de preconceito, um curta-metragem que retrata o corpo LGBT e a sexualidade com tamanha sensibilidade e destreza, incluindo texturas, sensações e sentimentos mistos nisso, é louvável. O cinema de horror tratou, por muitos anos, o corpo queer com formas monstruosas e aspectos que levavam a intensos sentimentos de abjeção para ressaltar seu deslocamento social, mas hoje a retratação mudou de forma para algo bastante diferente. O caráter animalesco desse corpo aqui se manifesta como algo sexualmente interessante e aprazível – algo que se intensifica com a inserção de elementos do BDSM nessa retratação, também. Me agrada imensamente a inventividade e em especial a coragem de sair da caixa e pensar para além das convenções, um experimentalismo cujo objetivo é, acima de tudo, fazer sentir.


Por Caio D Carvalho:

“A humanidade, há séculos, há milênios, demonstra ter uma obsessão com a sexualidade alheia, não é mesmo? Pois agora vocês vão pegar uma OVERDOSE de nossa sexualidade”. Se este curta-metragem literalmente falasse, isso seria umas das coisas que ele teria a nos dizer. Então se preparem: vocês vão embarcar em um erotismo gay feito pelo filho do Lars Von Trie com David Cronenberg. Vocês estão avisados. 

Bastidores do Mistério

Dirigido por Jesús Pérez Aparicio

Por Fabiana Lima:

Ludovicense de berço, considero que cresci cercada por uma espiritualidade aguçada, advinda de um ambiente cujas lendas e mistérios são infindos. Todos os cantos dessa cidade com 400 anos de história conservam uma relação intrínseca com o sobrenatural, com a mitologia e com a fé. Nossas manifestações culturais nascem disso, das múltiplas experiências que as pessoas carregam com o desconhecido, aquilo que não se consegue ver, mas que pode se sentir. Algo que não se explica, mas indubitavelmente, existe.

Bastidores do Mistério, através dos relatos do ator Urias e de um eu-lírico que pertence à Apolônia Pinto, se revela ser em um pouco mais de dez minutos uma espécie de peça teatral cinematográfica cujos monólogos nos guiam pelos corredores do Teatro Arthur Azevedo em uma viagem no tempo e no espaço. Um dos teatros mais antigos do país e um dos pontos turísticos mais conhecidos de São Luís se torna palco de uma história que, embora não faça questão de ter um contexto pré-estabelecido, se conecta conosco pela pessoalidade do seu texto.

É difícil não sentir uma conexão imediata com o ator, já que seu relato parece vir de um local de muita honestidade sobre suas vivências e experiências dentro daquele local – e em toda sua vida. Penso que o mais interessante de filmes que são construídos a partir de entrevistas e relatos tão pessoais seja o que pode vir disso, que não raro é muito surpreendente. Em pouco tempo, as histórias contadas por uma só pessoa, quando partem de um local de verdade, têm o poder de transmitir os mais diversos sentimentos e, inclusive, de nos emocionar.

Contudo, formalmente, percebo que o curta falha em refletir tamanha emoção que transmite em palavras. Através da escolha de planos médios e abertos, a câmera se mantém sempre distante de quem relata, o que nos leva a uma espécie de desconexão um tanto contraditória entre aquilo que se escuta e aquilo que se vê. Considerando que o filme pretende conectar a história ao lugar, faz sentido que essa alternância aconteça em alguns momentos e eu até gosto da ideia de, por meio de alguns planos-detalhes desse espaço, focar naquilo que parece exatamente igual desde Apolônia a Urias – e que acaba por conectar os dois. 

Porém a dramatização na reconstrução dos eventos peca bastante na maneira como é feita: distante e fria. Para uma obra que pretende nos levar a crer no sobrenatural, apreciar a espiritualidade e apresentar os mistérios da fé, Bastidores do Mistério se contenta em ser visto como apenas como uma espécie de curta-documentário, uma reconstrução dramática de eventos que poderia passar facilmente como uma reportagem. Diante de um tema tão interessante e relatos tão emocionantes, a obra é trivial, confiando inteiramente na força do texto para atribuir-lhe um caráter mais interessante. É um tanto desanimador, pra ser honesta. O filme termina com uma sensação de incompletude, de que poderia ter sido explorado muito além do que realmente foi, em todos os aspectos possíveis, mas especialmente na mise-en-scene dessa dramatização. 


Por Caio D Carvalho:

Um documentário que costura teatro, sobrenatural e a vida íntima do ator maranhense Urias de Oliveira com elegância e soturnez.  

Desejo

Dirigido por Tássia Dur

Por Fabiana Lima:

Desde o início dos tempos, ou ao menos desde o nascimento de uma sociedade patriarcalista, existe uma ideia conservadora e controladora sobre mulheres que se permitem viver e expressar seus desejos. A crença nefasta de que estas que tinham controle sobre seus próprios corpos e seu próprio prazer eram bruxas, feiticeiras ou indignas de amor é antiga, mas permeia a sociedade contemporânea até os dias de hoje,  disfarçada dos mais diversos discursos.

Para ser uma mulher digna de respeito e afeto, era mandatório abdicar do seu desejo carnal e sexual e expressar-se apenas através da vontade (muitas vezes, mentirosa) de ser uma mulher do lar. Uma mãe por natureza e nada mais. Ainda hoje esse tipo de pensamento tão limitante atinge uma grande quantidade de mulheres, mas com o movimento feminista crescente desde os anos 60, principalmente, e o acesso à informação aumentando, mulheres dentro dos mais diversos recortes sociais têm retomado cada vez mais o controle sobre o próprio corpo e entendido o desejo como algo tão natural quanto ser humana.

O curta de Tássia Dur é um dos mais viscerais da seleção justamente por sintetizar essas ideias em tão pouco tempo com a ajuda daquilo que realmente faz um filme transcender o uso de palavras: uma boa técnica, capaz de contar histórias inteiras apenas pelas imagens. Começando pela atuação espetacular da protagonista, que me levou até um lugar de ancestralidade, cujos sentimentos eram tão nítidos e invasivos. Tássia tem um olhar que fala muito mais do que qualquer diálogo, tornando sua presença em cada frame muito autoconsciente de sua própria potência, até mesmo para criar uma espécie de terror que irá preencher toda tela. 

A direção de arte e de fotografia também dividem esse mérito com a diretora e atriz principal de Desejo, já que tudo parece ser intencionalmente pensado a fim de produzir as exatas sensações que a câmera invoca. Desde o uso inteligente das cores, especialmente do vermelho que parece explodir em tela com a sensação de perigo iminente, até o uso das velas, da representação do sangue, o close-up nas correntes… Todos esses pequenos detalhes convergem para que a mensagem seja passada e, desse modo, contribuem para que o curta-metragem tenha a duração suficiente, nem mais nem menos, para ser impactante. 

O plano zenital ao final e o fato do roteiro recorrer ao canibalismo para ilustrar esse desejo feminino que se demonstra carnal em um nível até animalesco, é uma remissão direta ao nosso aspecto mais primitivo – o que torna essa cena tão boa. Como eu disse, Desejo é um trabalho, realmente, visceral, com tensão, suspense, terror e, claro, muito desejo. Sentimento esse que transborda pelas paredes e se eleva em destaque, na nossa cara, tão vermelho quanto pode ser.


Por Caio D Carvalho:

Me vejo fortemente atraído a concluir que “Desejo” narra de forma belíssima e grotesca a história do impulso feminino por fornificação mais extremo e sistematizado que já vi.  Assistir a este filme na sequência com “Casa de Bonecas” é pagar um ticket de viagem sem volta para algumas sensações desconfortáveis e maravilhosas que só a arte pode oferecer.

O Promesseiro

Dirigido por Ana Carolina Sousa

Por Fabiana Lima:

Em 1980, quando Eduardo Coutinho retomou as filmagens de Cabra Marcado Para Morrer, ele pode não ter se dado conta imediatamente, mas criou um documento histórico que ajudaria a preservar a memória coletiva sobre os horrores da Ditadura Militar brasileira. Mais do que um filme sobre a história de Elizabeth Teixeira e o desmoronamento de uma família inteira, castigado pelas marcas da violência, Cabra é um dos filmes mais aclamados do mundo inteiro (e um dos meus filmes favoritos, também), por conter em si algo que transcende a própria arte cinematográfica, a História de um povo inteiro. 

Tão importante quanto documentar momentos históricos, é documentar manifestações culturais. A preservação da cultura popular se dá de diversas maneiras, mas é eternizada mesmo quando passada de geração para geração, nos mais pequenos detalhes, e quando documentada, isto é, historicamente preservada das mais diversas formas, desde a fotografia e literatura, ao Cinema. O Promesseiro é um documento histórico, em forma de curta-documentário sobre o Baile de São Gonçalo, uma festa tradicional que une o povo pela fé, todos os anos, na cidade de Viana no Maranhão. 

Nascida de uma tradição popular portuguesa, dada a fundação jesuíta da cidade, a manifestação cultural maranhense ainda é pouco conhecida fora dos limites da região da baixada, mesmo que aconteça há pelo menos um século. Diferentemente da Capela de São Pedro em São Luís ou da Festa do Divino em Alcântara, o Baile da comunidade da região da baixada delimita-se bem mais àquele espaço especialmente pela quantidade de famílias tradicionais que ano após ano resistem e continuam a organizar essa festa que nasce, sobretudo, de promessas de fé. 

Para dividir um pouco do Baile do São Gonçalo conosco, a diretora e roteirista Ana Carolina Sousa utiliza relatos de três moradores da região, todos de diferentes gerações porém com um ponto importante em comum: o amor pela festa. Conforme as entrevistas vão aparecendo em tela, é possível perceber quanto carinho e dedicação todos têm sobre o Baile de tradição centenária, fazendo questão de conservar a festa do mesmo jeito que é feita desde o princípio: respeitando a religiosidade dos promesseiros e a ritualística que envolve o Baile do início ao fim.

Particularmente, o documentário me lembrou o filme O Guriatã (2018), o qual tive o prazer de assistir e escrever sobre há alguns anos. Ambos me levaram a pensar muito sobre o filme de Coutinho e demais obras do cinema nacional no que tange à importância de preservar a memória coletiva, a história de um povo, como uma forma de resgatar a ancestralidade que ajuda a fundar e manter essas manifestações culturais. 

A cada novo documentário, fotografia, livro, preserva-se e leva-se adiante essa cultura tão diversa, tão rica. O cinema é uma das formas que temos enquanto sociedade de eternizar momentos e pessoas e O Promesseiro é uma manifestação disso, reproduzindo para a eternidade a importância e os rostos de quem fez parte da história do Baile de São Gonçalo.


Por Caio D Carvalho:

Um dos trabalhos mais redondinhos, esmerados, de antropologia audiovisual que você poderá assistir, a nos dar uma competente etnografia dos atores sociais que promovem os Bailes de São Gonçalo em Viana – MA. Uma verdadeira celebração da memória e da promessa (elementos que, convenhamos, nutrem entre si ressonâncias mais fortes do que podemos desconfiar).

Terra 333

Dirigido por Keyci Martins

Por Fabiana Lima:

Não faz muito tempo desde que passei a enxergar uma casa como um organismo vivo, um local de proteção, identidade, acolhimento e desenvolvimento. Acredito que quanto mais o tempo passa, mais aprendemos a valorizar o local em que vivemos e nossas experiências acabam mudando nosso olhar sobre algumas coisas que sempre pareceram tão comuns, tão insignificantes. Me percebi bem mais seletiva, também, sobre quem adentrava minha casa e minha noção sobre tudo, desde então, mudou radicalmente. 

Em Terra 333, a casa é retratada como uma extensão do corpo. É como se, de alguma forma, um lar nascesse da mesma maneira como nasce um organismo vivo e a mesma matéria que a origina faz parte de algo maior, que transborda energia e movimento, tanto como o que irá compor a nossa própria forma. Aprecio profundamente essa maneira de pensar o mundo e enxergar o que nos cerca, atribuindo ao nosso espaço uma característica ancestral de conexão com a terra – a qual vem sendo perdida diante do desenvolvimento tecnológico latente e da própria forma de organização da sociedade contemporânea.

Um dos aspectos mais interessantes deste trabalho é que ele perpassa desde a concepção do projeto arquitetônico desta casa cuja particularidade é ser feita integralmente por mulheres e de uma forma um tanto incomum nos dias de hoje: com terra. O início do curta nos leva ao processo de construção dessa casa ressaltando o valor que ela possui para a protagonista, sem precisar entrar necessariamente nos pequenos detalhes como tempo de construção, dificuldades enfrentadas durante o projeto e outras questões como essas, bastando para nós entender que o valor agregado naquele imóvel vai muito além de uma ideia disruptiva, é espiritual.

Ao longo do filme, é mais interessante conectar-se com a natureza por meio do ambiente em que nos inserimos, perto das árvores e da natureza o tempo todo, do que tentar entender o que nos levou até ali. A trilha sonora contempla os espaços de uma forma quase meditativa, os tons terrosos e sóbrios de uma fotografia pouco saturada e uma câmera que se movimenta, quase sempre, com movimentos de eixo, são meios que irão estabelecer o Terra 333 como uma experiência sensorial profunda onde a casa ganha uma vida em frente a tela e vira, também, um personagem. 


Por Caio D Carvalho:

A carga simbólica, devidamente enciclopedizada, que a figura da “casa” nutre com <<mente>> ganha, aqui, contornos spinozianos: mente é corpo, corpo é mente. E tal contorno fica ainda mais especial quando, ao longo da narrativa do documentário, fica-se claro que há o empreendimento, por parte de um grupo de mulheres, em se construir uma casa feita de terra. Temos, assim, uma representação delicada, forte, feminina (e feminista), permancultural, do afeto de Deus no processo de criação do corpo humano – este mesmo Criador que, cá entre nós, não é homem porra nenhuma. Nunca foi. Deus livre Deus ser homem.