Críticas – Videoclipe | 5ª edição

Sobre o crítico

Caio D Carvalho é mestre em Semiótica e Comunicação pela PUC-SP. Bacharel em Ciências Sociais pela UFMA. Atua na produção e edição telejornalísticas, mas ainda é um homo academicus (no melhor sentido possível do termo…) incorrigível, estando atualmente focado em pesquisas sobre crítica de arte e o modelo barthesiano de crítica. É, além disso, musicófilo, eterno baterista e apaixonado por narrativas ficcionais (ou “mundos possíveis”, principalmente os do cinema).


Tô em outra – AQNO

(Dir. Sunday James)

A princípio, vendo a thumbnail do videoclipe “Tô Em Outra” no Youtube, pensa-se logo naquele clipe da Bjork para a música “Hunter”. Mas para além de protagonistas carecas e mutantes (e por mais que a letra dessa música de AQNO até dialogue, em certa medida, com essa da cantora e compositora irlandesa), a intertextualidade aqnesca (seja na forma, seja no conteúdo) vai além – e nos dá resultados híbridos interessantes. Em termos musicais (batida + melodia), digamos que Phill Colins dá uma bitoquinha no pagode romântico antes de abraçar um pop brasileiro dos anos 2000 em um refrão bonito e cativante. Em termos conceituais e visuais (a direção de arte está de parabéns, aliás), pode-se dizer que Ney Matogrosso toma um ácido dos bons, desperta o terceiro olho e resolve homenagear David Bowie, misturando narrativa alienígena com atritos e descompassos amorosos. Pois é, pelo visto, nem Deus, nem os homens e nem os ETs acreditam no “modern love” (leia-se “não entendem”).

BAILA – Amon | KaiNê | DiLLA

(Dir. Amon de Oliveira)

Amon, deus egípcio (que tem o mesmo nome de um demônio da Goetia, mas isso não vem ao caso agora), significa, pelo idioma egípcio, <<o escondido>>. E é justamente o que o Amon do clipe, junto com KaiNê e DiLLa, não são. Desde o começo do vídeo, fica claro que eles vieram única e exclusivamente para se jogar em uma multidão jovem e dançante, afim de curtir os prazeres que uma noitada em algum ponto do Centro Histórico pode proporcionar a adolescentes ludovicenses – tudo isso embalado por um trap de rapazes héteros hedonistas da periferia. Tudo na linguagem do clipe, com cortes rápidos e efeitos de CapCut, associados a um tratamento relativamente escuro e fosco das imagens, contribui para essa sensação de “estou suado e cercado de gente, cheirando a cerveja, diamba e hormônios, e que se dane o amanhã – que será um sábado, inclusive”.  

Minotauro – Deep Hatred

(Dir. Rogério Sousa e Lourena Myrla)

Assistindo a Minotauro, me permito afirmar que esse death metal mais “polido”, mais preocupado com algum preciosismo nos arranjos, do Deep Hatred, é proporcional a certo cuidado com a forma final do produto clipe – o que pode parecer uma afirmação estranha para quem não está acostumado com uma música dessas ou com os códigos imagéticos daquilo que chamam de metal extremo. Mas estamos falando daquele lance: é muito mais fácil soar bobo fazendo poesia do que fazendo prosa. Da mesma forma, fazer metal, em termos audiovisuais, traz riscos de parecer caricato, “tosco”, principalmente para quem não consome esse nicho musical com familiaridade. Sendo assim, o clipe de Minotauro – dentro da proposta estética já anunciada e codificada com a logo da banda bem no começo do clipe* – é, na falta de um termo melhor, na medida. Consciente dos riscos estéticos, lida bem com eles, oferecendo-nos ótimos takes de uma breve narrativa slasher. Sem falar nos riffs do caralho e no impressionante vocal gutural da Selv Lopes.   

*Sempre que você não conseguir ler de primeira o nome de uma banda a partir do logo dela, as chances de ser uma banda de death metal são grandes. 

Magia Negra – ENME feat. BIXARTE

(Dir. Enme Paixão)

O destaque mais evidente deste trap/funk é, lógico, a proposta maliciosa de subversão dos valores codificados ao termo “magia negra”. Subverte-se, pois esta magia é celebrada enquanto trabalho e energia da música preta e queer, que quer se ver como contagiante, fascinante, irresistível. Ao mesmo tempo, a proposta é tão maliciosa que talvez se permita algumas condescendências (como a sugestão de sortilégio e mandraquice que a presença de um defunto envolto em um saco evoca) e alguns desalinhos consideráveis, como se utilizar desta energia acima para evocar predisposições ao meretrício* (mas isso é um tipo de ruído que provavelmente, por alguma razão, pode fazer sentido ao público das artistas). Muitos até poderiam interpretar aquele cadáver como sendo símbolo de como a sociedade vê e trata corpos negros, estes mesmos corpos mostrados, acolhidos, revalorizados e, por fim, reanimados por aquela magia. É uma leitura que o clipe também permite, por que não? Esta é a força e a maldição da linguagem artística: frequentemente gera oxímoros, muitas vezes à revelia do autor de carne e osso… 

* “Sabe que eu não sou boneca, tira o olho da minha neca/ Cai de boca e não me apressa e não esquece de pagar/ Hora marcada, não vem dar mancada que eu não sou casa pra você morar/ Quero chandon, um glub do bom. Não erra o tom, quero ouvir o som”

Xote à Beira Mar – Forró do Mel

(Dir. Jonas Sakamoto)

Como bem o nome da banda já anuncia, “Xote à Beira Mar” é um clipe açucarado, tal como um bibelô feito de sal de mar doce, de grãos cristalinos, bem talhadinhos que só o côco. A quase pieguice das cenas de namoro entre um rapaz e uma moça, a trocarem carícias pelo toque e olhares pelo visor de uma câmera, se justifica pelo teor romântico da letra, e é compensada pelas ótimas escolhas de enquadramento e de iluminação. As deixas que os vocalistas usam para entrar na melodia de cada refrão, partindo de /eu quero ir/ e chegando /à beira-mar/, são deliciosas como um biscoitinho areinha. 

COSMETICS – FRIMES

(Dir. Frimes)

Assistindo (e me divertindo) com o clipe “Cosmetics”, da Frimes, sou tentado a observar que… Por baixo de toda aquela base pesada de PC music; sob todo aquele tosco e divertido pó de CGI; e camuflado por aquela grossa, cômica e pornográfica camada de blush, se esconde, talvez, um depoimento singelo (e de considerável valor antropológico, quem sabe) sobre a relação de uma pessoa com aquilo que faz sentido à existência identitária e performática dela. Poucas vezes vi um não-se-levar-a-sério como esse – e poucas vezes vi alguém rimar tão bem “pop do futuro” com “pau duro”. 

Desdobrosa – Gugs feat. Eloi e Aleh

(Dir. Gugs)

Tal como a proposta músico-visual de Amon, KaiNê e DiLLA (já comentada ao se analisar o clipe Baila), a investida de Gugs, encarnada no vídeo Desdobrosa, performado em parceria de Eloi e Aleh, também se apresenta como aquele ritmo urbano de mancebos héteros de periferia. A sensação só não é inteiramente de déjà vu pois os personagens do clipe não se deram um momento específico e contínuo de curtição noturna compartilhada, tal como Amon e cia., mas se mostram como funcionários de um açougue que estão às voltas com as próprias declarações e confissões de amor e desejo (se são para a mesma cremosa, aí já não sei) enquanto tocam uma produção caseira de drogas, envolvendo fogão, panelas e muita fumaça. Há uma narrativa mais “desdobrosa” em curso, portanto – melhor descortinada por quem melhor manja das gírias, das relações e valores dessa matriz cultural retratada no clipe.   

Timon, Papel e Letra – Jaísa Caldas

(Dir. Renata Fortes)

É digno de nota o fato de que a linguagem visual do clipe de “Timon, Papel e Letra”, de Jaísa Caldas, esteja aquém do rap aforrozado com temática social que embala o próprio ritmo das imagens e dos cortes. O contraponto da sanfona com o batidão é delicioso, e conversa muito bem com a letra da cantora e compositora. Por outro lado, toda construção visual do vídeo soa como um irmão mais novo do clipe “Dama da Quebrada”, da Enme Paixão, lançado ano passado (um irmão menos colorido, menos ‘pirotécnico’ e bem menos ligado no 220v quanto o primogênito, contudo). O que é uma pena, pois nos créditos de “Timon, Papel e Letra”, a própria artista demonstrou, com um único take interessantíssimo, que tinha a faca e o queijo nas mãos para experienciar sair dessa já desgastada cartilha da linguagem visual do ‘clipe de rap’ da capital. 

PELO MENOS EU TENHO VOZ – MARCO GABRIEL

(Dir. Renata Fortes e Weslley Oliveira)

Visualmente, “Pelo Menos Eu Tenho Voz” é virtuoso, sem medo de parecer over. É seguro na incontinência de brincadeiras e truques de edição. Combina com a fala rápida e agressiva de Marco Gabriel, que se dana a soltar o verbo sem medo, seguro do bom gosto do arranjo instrumental pautado pelo teclado de Mr. Adnon.  

Caixeira – Rosa Reis e Cacuriá de Dona Teté

(Dir. Thais Lima)

Os caminhos do cacuriá (em especial o cacuriá de Dona Teté) e o da Festa do Divino Espírito Santo de Alcântara se cruzam curiosamente por meio da figura das caixeiras. (Digo “curiosamente” pois essa história envolve um homem que quis deliberadamente inventar um folclore e uma mulher que deu, digamos, um upgrade nessa invenção – está tudo no livro “Festa, Fogos, Fogueira e Fé” de Américo Azevedo Neto, depois procurem). Tanto no cacuriá quanto na Festa de Alcântara, temos ali as peles das caixas do Divino sendo percutidas. Os ritmos são diferentes, mas o timbre é o mesmo. E quem toca este instrumento na Festa são as caixeiras. Daí que a proposta do clipe de Rosa Reis, em parceria com o cacuriá da Dona Teté, é explicitamente celebrar a figura dessas mulheres – e o vídeo só tem a ganhar ainda mais quando foca em mostrar, da metade para o final, as caixeiras do Divino, todas já senhoras, cantando e curtindo serem filmadas.  

Corpo Aberto – PAULÃO

(Dir. Ingrid Barros)

A beleza e a displicência andam de mãos dadas durante todo o clipe de “Corpo Aberto” de Paulão. E não, pelo amor de Deus, não estou ironizando o casal que, de fato, inicia o vídeo em uma linda praia, e muito menos estou atualizando qualquer sugestão de metáfora vinda da letra e/ou das imagens. Acontece que os belos takes da dupla em questão, que desfila e posa ao som do competente arranjo de tecnomacumba da música, simplesmente têm fôlego curto. A partir de certo ponto, todos os takes usados até então são usados de novo, e de novo, e de novo (!), o que deixa o clipe repetitivo, evidenciando alguma displicência por parte da produção. E querem saber? Não há como ignorar uma considerável falta de química entre o casal, o que acaba gerando em nós um retrogosto na recepção da letra cantada por Paulão.  

Selvagem – Paolo Ravley

(Dir. Paolo Ravley e Sunday James)

O eu-lírico da letra de “Selvagem” parece conformado em estar num relacionamento complicado, não resoluto, totalmente emotivo, sem prumo. Parece até admirar ou possuir algum orgulho dessa condição, afinal, como ele mesmo admite no refrão, “a brincadeira é chegar na beira do abismo da indecisão” mesmo. A melodia que desdobra essa frase, inclusive, é o ponto alto da composição. Acontece que eu não aconselharia ao roteirista do clipe que esta brincadeira fosse travada também entre ele e o clipe em si, já que entre  lindos closes e travellings frontais, laterais e verticais em plongée, alguns elementos de referência a aspectos da cultura popular (como o terço, o olhar de uma senhora preta, uma miniatura de uma caixeira) parecem deslocados, como que inseridos ali meio que de forma gratuita. Obviamente estas aleatoriedades não chegam aos pés da falta de prumo do relacionamento do eu-lírico, mas demonstram que a arte não deve viver só de intuição. Tem que haver um relacionamento dela com o rigor – e de preferência de forma bem resoluta.